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domingo, 14 de junho de 2020

DEAMBULAÇÃO SOBRE PANDEMIA COVID 19, ENQUANTO ESPELHO EM TERTÚLIA DA UNIVERSIDADE SÉNIOR DE BARCARENA, OEIRAS


TERTÚLIA




















Pandemia (CoVid-19) enquanto “espelho”

                     Deambulação

A pandemia actual tem contornos de um curso intensivo em “gestão de apocalipse”. Mas é
discutível se a CoVid-19 tem especificidade apocalíptica. No entanto, tem muitas das
características que associamos a algo dessa escala. Assim, como as perturbações climáticas, é
global; como guerra nuclear, é mortal. Mais importante ainda, como qualquer crise desta
magnitude, não pode ser resolvida apenas por um único país ou mesmo região, por mais
poderosos que se pensem. Assim, enfrentar a CoVid-19, mesmo sem falar em apocalipse
(cataclismo), requer cooperação. Não apenas ao nível do Estado-nação, mas também dentro das
comunidades. Provavelmente não é surpresa que isso esteja a mostrar-se difícil. O paradigma
vigente é ainda desequilibrado porque competitivo, individualista e por vezes de um nacionalismo
retrógrado.
Por tudo isso, também não surpreende os que leram atentamente vários “romances” ou viram
filmes ou programas de televisão sobre o fim do mundo: a falta de cooperação diante da
catástrofe é um tema comum em todas estas histórias. Os contos de um fim-do-mundo iminente
incluem geralmente pessoas egoístas, medrosas e gananciosas, que não querem ajudar os vizinhos
ou trabalhar em conjunto. Dada a sua frequência, torna-se evidente que não se trata de “tropeços

narrativos” inconsistentes. Esta narrativa está no centro de todos os tipos de sagas ante e pós-
apocalípticas. Os antagonistas não cooperativos podem ser vizinhos paranóicos, gangues armados

que roubam comida ou “senhores de guerra” que pretendem usar recursos básicos - como a água
ou outro bem essencial - como meio de controlo. Ou, com mais frequência - e de maneira mais
simples - podem ser apenas açambarcadores. Por exemplo, os que guardam zelosamente os
“seus” rolos de papel higiénico.
No entanto, a CoVid-19 mostra-nos que essa leitura é realmente incompleta, de uma maneira
bastante surpreendente. É algo que os autores de narrativas apocalípticas raramente imaginam.
Acontece quando a falta da vontade de cooperar radica na completa negação de que está em curso
uma “crise” visível - entre outras menos evidentes - que apresentam padrões de impacto
planetário, isto é, catástrofes globais. Nesta era de pandemia(s) e epidemias - não
necessariamente virais - essa negação é assustadoramente comum. Tanto o Facebook como o
Twitter e outras plataformas, estão cheias de posts de indivíduos que orgulhosamente anunciam a
sua recusa em usar uma máscara em público. Infelizmente, esse tipo de negação não se limita a
posts (de “comunicação” social) mal escritos, mas engloba protestos barulhentos - e por vezes
armados - assim como relatos de actos violentos de desafio que aparecem repetidamente nas
“notícias”. E não apenas nos Estados Unidos da América.
“Crise” e “Espelho”
Diz-se que a “dificuldade” aguça o “engenho”. Sim, parece verdade, mas o que resulta desse
“fazer” depende em muito da perspectiva com que olhamos, ou seja, da abrangência (largura e
profundidade) e equanimidade com que a mente consegue ver, enquadrar, reflectir e agir. Por
outro lado, pergunto, será que esta pandemia se constitui realmente como uma “crise”? Ou
provoca uma “crise”? Mas ela própria não resultará de uma “crise” maior, uma “crise"
civilizacional global? É no entanto verdade que coloca uma série de dificuldades, em função de
um status quo instituído que causa perturbações diversas consoante a situação de cada um(a) no
contexto da sociedade onde vive.
Sim, claramente, os mais desprotegidos recebem o prémio da fragilidade, enquanto uma minoria
“sofre” um decréscimo do acúmulo de riqueza, havendo mesmo os que têm a sua fortuna
substancialmente aumentada. Vemos então que uma “crise” apresenta dois aspectos funcionais:
dificuldade e oportunidade (potencial de inflexão), que desembocam em uma qualquer
possibilidade de mudança. Em qualquer crise é-nos dada a oportunidade de avaliar as nossas
tendências habituais. Assim, e enquanto sociedade, até que ponto poderemos e saberemos usar
esta dificuldade-oportunidade que agora surge?
À medida que a crise ambiental se aproxima - prometendo mais e mais perturbações globais - a
CoVid-19 agiu como uma espécie de prenúncio, de “espelho”, cujas imagens apresentam algumas
nuances “brutais”. Se a crise climática e ambiental é uma emergência lenta, este coronavírus é
rápido em termos de criar um “espelho” social e individual, que nos mostra as severas limitações
e destruições de uma economia globalizada e obcecada pelo “crescimento” económico. Um
conjunto de imagens implorando que as saibamos modificar antes que seja tarde demais.
Das cinzas e escombros tem vindo a surgir uma sede para re-imaginar um mundo melhor porque
mais igualitário e sustentável (para os humanos e outras espécies). Escritores como Rebecca
Solnit, Arundhati Roy e Naomi Klein pediram que as pessoas usassem esta crise para animar as
forças que historicamente criaram mudanças sociais radicais e sociedades que olham o futuro
compassivamente, ou seja, do Estado Europeu do (alegado) bem-estar para um “New Deal”

verdadeiramente sustentável, sendo que “sustentabilidade” implica manter condições eco-
sistémicas equitativas. Para os humanos, não apenas através de barreiras sócio-económicas e

geográficas, mas também através do tempo inter-geracional, o seja, uma maneira das sociedades
progredirem e prosperarem em harmonia com o planeta. Afinal, como poderia ser de outro modo?
Por outro lado, é claro que existe um desejo compreensível do capitalismo voltar ao “seu” lugar, 1
conter a devastação económica e regressar aos sistemas que existiam antes, por mais imperfeitos
que sejam. Para os que perderam o emprego ou estão a lidar com doenças ou morte, imaginar um
futuro económico alternativo sustentável pode ser a última coisa que surja nas suas mentes.
Compreensível-mente. Mas para aqueles com o “mérito” de respirar por um momento.

O capitalismo é fantástico em fazer as pessoas desejarem coisas que não precisam. A qualquer preço, moldando
hábitos e desejos, sequestrando a nossa atenção e gerando comportamentos viciados. Muito do que temos hoje
corresponde ao que Courtwright denomina “capitalismo límbico”, uma referência à zona do cérebro que lida com o
prazer, motivação, sobrevivência, etc. Os avanços da psicologia e neuroquímica são utilizados por grandes
empresas para formatarem muito lucrativamente os “instintos” humanos. Pensemos, por exemplo, em todos os
aplicativos e plataformas projetados especificamente para desviar a nossa atenção com pings e dopamina enquanto
colectam e usam os nossos dados. Sempre tivemos alguma forma de capitalismo límbico, diz Courtwright, mas os
métodos são agora muito mais sofisticados, sendo a gama de comportamentos viciantes muito maior do que
anteriormente, com todos os problemas que isso implica. A batalha contra o capitalismo límbico é aparentemente
interminável. Estamos a falar de indústrias globais que basicamente incentivam o consumo excessivo e o vício. Na
verdade, não só o incentivam como chegaram ao ponto em que o desenham. Estaremos destinados a viver em
distopia consumista? Cf. Courtwright, David T. (2019), The Age of Addiction - How Bad Habits Became Big
Business. Harvard University Press

fragrância das glicínias e imaginar o que pode vir a seguir a esta “grande pausa”, parece estar a
ocorrer um momento extraordinário para re-avaliar. Como escreveu Julio Vincent Gambuto no
follow-up ao seu ensaio viral publicado na revista Forge:

«Esta é uma oportunidade única na vida para cancelar a inscrição, para que te possas re-
inscrever na vida que realmente desejas.»

A mudança em larga escala pode ocorrer de várias maneiras: (1) transformação da mente, (2) des-
institucionalização dos “Três-Venenos” e (3) a vigilância cívica constante, que se constituem

como motivações estruturantes para uma mudança de paradigma. Esta crise não é apenas global e
estrutural. É também pessoal e societal. Desmontar a máquina do capitalismo e da sua
“filosofia” (neoliberalismo, falho de ética e pleno de “realismo” míope) pode não ser 2
inteiramente possível. Mas existem maneiras práticas de reformular a nossa relação com esse
sistema maioritariamente disfuncional. E essas mudanças práticas podem ser relativamente
pequenas, mas são seguramente importantes. São serenas, gentis e começam literalmente do lado
de dentro da nossa porta da frente. De muitas maneiras, a pandemia mostrou-nos que é possível.
Mas vamos olhar um pouco mais para esse “espelho”, para que possamos ver com mais clareza o
que mais importa.
Esta crise pandémica permite o surgimento de um “espelho" de várias camadas, que ajuda no
desvelamento de múltiplas questões na “rede-de-vida”. Sem que jamais se possa descurar a
interdependência e interpenetração de todos os fenómenos - que dão também forma e dinamismo
a essa rede - podemos ver várias camadas “fotográficas” onde se podem enumerar, entre outros,
os seres sencientes (humanos incluídos), as suas sociedades, assim como todas as interações ao
nível planetário (interações bióticas/abióticas).
Esse “espelho” mostra genericamente um ecocídeo generalizado onde o sofrimento se verifica e/
ou adivinha em formas patentes e latentes, tais como a destruição de ecosistemas, perda de
biodiversidade e crise ambiental, aumento de desigualdade social, problemas psicossomáticos
crescentes, etc. Diretamente nos humanos, ao nível “individual” e colectivo, vemos medo e
angústia, pânico, fome, e doenças, desemprego e morte. Outra questão importante - e não só no
que toca a esta pandemia - é a abordagem isolacionista, de desenquadramento, onde cada

ocorrência, seja surto, furacão, inundação ou outra, é entendida como facto isolado, escondendo-
se tendencialmente os nexos mais ou menos evidentes que lhes estão subjacentes.

Paradoxalmente, a CoVid-19 aparenta funcionar como uma espécie de terapia para a Recuperação
Ambiental do Planeta (RAP). Mas por quanto tempo? E que lições podemos aprender se
olharmos o “espelho de nós mesmos”? Agiremos em conformidade ou continuaremos letárgicos,
a “fugir para a frente” enquanto houver tempo e possibilidade? E, acrescento, para que possamos
aprender as lições que parecem surgir agora, o “espelho” tem de estar suficiente “limpo”. O que
obriga a fazermos as opções factual e cientificamente adequadas. Voltar ao “normal” implica
deixarmos de “ver” o “espelho”. Consequentemente, não deverá ser o nosso objectivo mas sim a
última coisa que deveríamos desejar. Que gerações/planeta deixaremos ao planeta/gerações? Sem
Se formos simplesmente “realistas”, estaremos a encurtar horizontes e a dizer simplisticamente “Não, isso não é
possível” a tudo o que desafia, é incerto ou mesmo arriscado. Dito de outro modo, dizemos Não a tudo o que torna
a vida plena de emoções de participação e que têm a possibilidade de alargar exponencialmente os nossos
horizontes cognitivos

medo nem fingimentos enquanto rotinas pandémicas e sem “areia” nos olhos para que, quando os
abrimos, possamos ainda enxergar.
Doze Imagens que o “Espelho” nos mostra
1 - Agressão - Nem todos os nossos medos podem ser aliviados através de uma postura dualista,
logo mais ou menos agressiva.
2 - Compaixão e Acção Cívica - Existem muitos espécimes humanos compassivos e civicamente
conscientes.
3 - Interdependência - Vivemos realmente na única população global de seres humanos. Quase
todas as pessoas ao redor do mundo podem ser simultaneamente afectada por um micro-bio(s),
humano ou não.
4 - Não-Aleatoriedade - A mortalidade não é de distribuição aleatória. Podemos não saber qual a
razão porque uma pessoa jovem morre e outra sobrevive, mas a natureza parece insistir em que se
respeite a sua impenetrabilidade ... ou mostra-nos simplesmente as evidências da nossa
ignorância, de não vermos a interpenetração de todos os fenómenos?
5 - Hiperatividade/Serenidade - Foi a tua vida de hiperatividade que te fez feliz, ou encontraste
melhor equilíbrio com um estilo de vida menos agitado?
6 - Causas e Condições - A ideia de ocorrência acidental, de algo mais ou menos efémero e
incausado (que não faz parte da “essência” de uma “coisa”), de que muito do sofrimento humano
é acidental , equivale a usar um penso rápido na esperança de curar um furúnculo. 3
7 - Co-operação - O mundo não pode conter este vírus sem cooperação. Este coronavírus teve
sorte, pois surgiu num ponto baixo de cooperação global.
8 - Austeridade e desigualdade - Estas duas características sociais tornam os humanos menos
resistentes e resilientes.
9 - Sistemas sociais de bem-estar - Os governos que passaram décadas a degradar com êxito os
sistemas sociais de bem-estar, lutam agora por os reconstruir rapidamente.
10 - Os invisíveis - Os pobres e os migrantes não podem ser invisíveis. Os vírus podem ver as
pessoas, que geralmente tantas vezes surgem como invisíveis aos decisores políticos a soldo de
valores inconfessáveis. As condições em que centenas de milhões trabalham e (sobre)vivem são
um problema de todos.
11 - Sofrimento Global - A perda progressiva de perspectiva lúcida sobre o que é a vida, surge
como condição de possibilidade de uma experiência crescente de sofrimento.

12 - O “espelho” - Ver o “espelho” implica ser “rede-de-vida"? Olhar o “espelho” é ver a “rede-
de-vida”? Ser “rede-de-vida” é ser “espelho”?

Na metafísica aristotélica, um “acidente” é uma propriedade que não faz parte da [alegada] *essência de uma
“coisa”, algo que esta poderia perder, ou passar a ter, sem deixar de “ser” a mesma “coisa” ou a mesma
“substância”. Assim, os acidentes dividem-se em *categorias: quantidade, acção (lugar na ordem causal ou
capacidade para afectar coisas ou ser afectado por elas), qualidade, espaço, tempo e relação (Blackburn, 1997). Os
itálicos, parêntesis rectos e aspas foram acrescentados.

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